DRAMATIS PERSONÆ.
(*Étant donnés* — estando dado, antes que comece o jogo. )
O Outro (estruturando-se como linguagem)
O Outro (condensando-se como linguagem)
Prólogo:
Un coup de dés jamais n’abolira le hasard — um lance de dados jamais abolirá o acaso grita o poema tipográfico de Mallarmé (prenome Stéphane, por acaso mas sem o i) publicado pela primeira vez em 1897. É uma cacofonia visual que não obedece a estruturas formais convencionais da língua em que foi escrito. Atormenta o leitor, que naufraga num mar de itálicos inapropriados, capitalizações excêntricas e toda sorte de estranhezas que parecem arbitrárias ao mesmo tempo sugerindo a possibilidade de se construir significado; uma tentativa de colapsar o vão que separa a representação do que é representado. O sonho de uma “harmonia das palavras e das coisas”, onde linguagem e objeto se fundem, passado se faz presente, para uns pode ser entendido como um mecanismo intelectual de defesa frente ao sofrimento advindo da experiência do luto; para um outro, como eucaristia; ambos constituindo um movimento violento de recuo, recusa ou retração da condição humana encarnada.
Adrienne Rich, poeta, agora em 1973, em Diving into the Wreck (Mergulhando no Naufrágio, em tradução nada caprichada minha), abre o poema estabelecendo já na primeira linha que o naufrágio que experimentamos — nós como leitores, ela como poeta — é bem diferente do naufrágio em que nos afoga Mallarmé:
Tendo já lido o livro dos mitos, / colocado filme na câmera, / e inspecionado o fio da navalha, /
Só então, visto o traje-armadura de borracha preta / o absurdo pé-de-pato / e a máscara sombria, desconfortável. / Tenho que, e faço isso / não como Cousteau com sua / equipe sempre alerta / à bordo de uma escuna ensolarada / mas aqui, sozinha.
O acaso “jamais abolido” no jogo de Mallarmé é o resultado de dados viciados. Assim como o Cousteau de into the Wreck sabe que pode contar com sua equipe, Mallarmé, me parece, sente que o livro dos Mitos, no fundo no fundo (do Mar?), e o que ele pode encontrar lá, foram escritos par hasard (et pas rasé, digo!) por e para ele. Rich sabe que é herdeira (e fruto) da mesma herança cultural — e de seus destroços — da qual Mallarmé é parte (e também legatário, excluídos os espólios do tempo que os separa). Mergulha fundo para poder examinar não só o tamanho do estrago mas também os tesouros que prevaleceram, mas principalmente, para se reconhecer ali, por covardia ou coragem, mais uma vez, carregando um livro dos Mitos onde seu nome não está escrito. Não há possibilidade de se afogar no naufrágio de Rich porque aqui a linguagem funciona como mapa, não como destino manifesto. Seu sonho é o de uma linguagem comum (The Dream of a Common Language), também fruto do sofrimento da experiência da perda; não a fusão linguagem-objeto, mas pluralidade que se condensa em linguagem, similar à ideia da “linguagem do sonho”.
Pois.
PLAY, a exposição de Stephanie (com i) Lucchese, é o próprio mise-en-abîme, ou the play within the play, o situar no abismo, o jogo que revela o que está em jogo. Seus trabalhos, entende-se, colocam em cena os mesmos personagens. Se por vezes aparecem despreocupados num jardim idílico onde a cor e a luz sedutoras e matizadas, as frutas ou comidas em oferta contrastando luminosas com o cair da tarde funcionam como amusegueule, tornando palatável tema tão difícil como o desejo do sujeito frente ao desejo do Outro, aqui encenam uma fantasia mais sombria; a paleta de cores é concisa, mas não por isso pouco ou menos complexa; a complexidade é tonal — como se, já tendo lido o livro dos Mitos, pudéssemos agora encenar não mais os motivos mas o leitmotiv. Não importa quem sonha o que está sendo encenado: se somos nós, a artista, ou as próprias figuras que aparecem ali, mas sim a fantasia para a qual o desejo nos aponta. Fantasia de completude, de harmonia dos símbolos e das coisas. Não, a pintura se apresenta, encena, ou representa, visível e passível de ser experimentada, como uma forma radical de choque entre linguagem e objeto, como o próprio jogo do desejo.
De onde não se pode falar é feito o silêncio.
ATO I
Anterior/exterior — Playground / palco / tabuleiro / tableau. O tabuleiro é um espelho reverso, não a refletir uma ficção jubilante de completude mas revelando-se. Espera-se do público — que é testemunha, ator e diretor — interromper e mudar o curso da ação “NÃO SOMENTE POR PRAZER”. Cortina.
*À rebours.
- Por M. Brias, 2025