









Há muitas coisas socialmente aceitáveis que se pode fazer com uma pedra. Construir um castelo¹, lançar um seixo sobre a espuma do mar ou deitar-se sobre uma laje de mármore, se estiver morto. Do lado de fora, tente chutar uma pedra. A expressão frequentemente citada do poeta britânico Samuel Johnson, chutar a pedra, é usada para se referir a algo que é material e, portanto, real.² Renata Haar desenvolveu uma prática artística a partir de encontros performáticos com pedras: o material, o real. Gravar, pressionar, respingar com dedos e palmas. Como tocar uma pedra de forma íntima? É possível transgredir limites pessoais com uma pedra? Um encontro entre duas formas naturais pode ser, de alguma maneira, não natural? O arranhar das unhas contra o granito. A poesia de riscar o mármore. A devoção diante do que a natureza oferece. Citando outra palavra britânica (Charli XCX): tudo é romântico.
Haar criou um novo conjunto de esculturas que transpõe suas técnicas de desenho bidimensionais para a terceira (e até a quarta) dimensão. No papel, o lápis tem uma legibilidade comparável a um letreiro de neon na noite. Mas, sobre as pedras, o grafite afunda e se espalha em uma paisagem material que tudo consome. Os desenhos já estão ali, pré-existentes, como formas e linhas orgânicas que dão textura à superfície. Eis o fenômeno dos motivos esotéricos da natureza: espirais, setas, círculos perfeitos. Haar identifica essas obras de arte prontas e as amplifica com suas próprias intervenções. Segue as linhas naturais da pedra ou delas se afasta? Há um componente narrativo em sua prática, uma forma de contar histórias que se materializa formalmente. Ela raspa a superfície, sem violentá-la. Respeitar o mistério do interior da pedra, respeitar o silêncio de sua interioridade. Não feita pelo homem, mas pela mulher.
O que significa colaborar entre um corpo quente e macio e o granito frio e duro? Significa os sulcos profundos de Haar, que abrem espaço para a cor por meio da entrada da luz. Sulcos profundos, como se feitos por um anjo outrora divino caído (splat) sobre a terra. Sulcos profundos, como se marcados quando a pedra ainda era primordial e informe. Sulcos profundos, uma linguagem que os ancestrais compreendiam. Cristais de calcita interligados no mármore que se tornam mais brilhantes… As esculturas de Haar exploram as múltiplas possibilidades de encontro entre corpo e pedra. Na superfície de uma obra recente, borrão e nitidez coexistem sobre o mármore branco e viscoso. De um lado, o material é nebuloso; do outro, é preciso. Qual marca foi feita com o apoio ativo do mármore, e qual foi feita por Haar? A distinção é imperceptível, tamanha a intimidade com que Haar observa o material — um olhar próximo ao inframince de Marcel Duchamp ou à visão minimalista de James Lee Byars.
Ao transformar o mármore brasileiro — do Espírito Santo — em esculturas, Haar contribui para um processo orgânico e local de formação da paisagem. Antes de chegar ao ateliê da artista, o mármore já havia passado por sua própria metamorfose. Trata-se de uma rocha metamórfica composta pelos restos de organismos marinhos. Mármore é uma vala comum, enterrada sob pressão durante milhões de anos. A intervenção minimalista de Haar nasce de seu conhecimento do material. Em sua obra não há busca sisífica pela perfeição, porque ela já existe na própria natureza da pedra. Com uma fragilidade poderosa, Haar se funde aos processos naturais pré-existentes sem o desejo humano de dominação. Sua espiritualidade é um meio de produção, não de representação. Trata-se da espiritualidade de um minimalismo místico, próximo ao trabalho de Agnes Martin, e não, por exemplo, a um catolicismo barroco.
Em vez de chutar uma pedra, tente abraçar uma escultura.
Por Dra. Róisín Tapponi
¹ Veja: Enya.
² A expressão surgiu a partir de uma anedota em que Samuel Johnson refutava a teoria filosófica do bispo Berkeley sobre o imaterialismo ao chutar fisicamente uma pedra.