Portais sem começo nem fim. Rajadas de energia disparadas em fractais dinâmicos. Campos de força em plena ação. Um buraco negro. Um sorvedouro de mundos. Astro negativo, acontecimento insondável. O que o olho não vê o corpo sente como gravidade. Uma imagem escura que se impõe pela ausência, absorvendo tudo, apenas para devolver ao todo a própria luz que a circunda.
Um corpo confinado num quarto, suspenso no vácuo. Cai contra a quina da parede, ressoando sua existência, demolindo o instante. Após a colisão, ganha impulso e se solta novamente. Um instrumento musical tensionado continuamente, com as cordas reverberando num só tom. A repetição como ruína em construção; a insistência como absurdez irrevogável. O gesto bruto e direto, levado à exaustão, arrisca uma nova linguagem.
Nesta exposição, Caio Carpinelli e Bruce Nauman dividem o mesmo âmbito — não por afinidade estética, mas por uma tensão que dilata o espaço e o tempo, trazendo provocações sobre o lugar e as capacidades do corpo. De um lado, temos a série Câmara de Reflexão (2025), de Caio Carpinelli: superfícies negras imensas, compostas por sucessivas camadas de tinta e silêncio, em que formas geométricas aparecem como inscrições residuais, embutidas na espessura densa da matéria. As pinturas parecem absorver tudo a seu redor — e, no entanto, devolvem algo, num paradoxo imbricado entre o opaco e a revelação. Como espelhos escuros, sugerem tanto o vórtice quanto o reflexo, o ocultamento e a aparição, a dissolução e a gênese. O preto, aqui, funda um vazio às avessas, feito de acúmulo: de gestos, de decisões, de fricções entre tinta e água, entre choque e assentamento, entre cálculo e execução. Cada trabalho é o resultado de um processo — físico, mental e espiritual — vivido de modo intenso pelo artista, que instaura no campo pictórico uma temporalidade suspensa por meio do manejo da matéria escura e da devoção ao seu mistério. No fundo do vácuo, porém, é a luz que surge novamente, reprogramando de modo frontal a realidade como a conhecemos.
As imagens que emergem das pinturas desvelam fenômenos astronômicos: corpos celestes majestosos, pulsações gravitacionais, trajetórias orbitais, resquícios de explosões silenciosas na vastidão do universo. Na fricção entre o minimalismo formal e o simbolismo latente, há uma densidade alusiva e mística que atravessa essas obras: cada forma, cada camada de preto, parece conjurar forças cósmicas e psíquicas sem nunca nomeá las diretamente. Instauram-se, assim, rituais em que a pintura funciona como uma sala alquímica e a superfície, como um portal fendido à nossa frente, convidando-nos ao abismo transformador.
Em contraponto, os vídeos de Bruce Nauman — Playing a Note on the Violin While I Walk Around the Studio (1967–1968) e Bouncing in the Corner nº1 (1968) — surgem como batimentos rítmicos que marcam o tempo distendido da exposição. Em ambos, o corpo do artista funciona como um metrônomo vivo, orgânico e impreciso, preso ao compasso de gestos repetidos, tensos, desobrigados da razão. Em confronto direto com as balizas de um espaço mínimo, o artista trabalha a repetição e a economia do gesto ao extremo. Sua ação opera no limite, sob parâmetros mínimos e, por isso mesmo, abre uma fenda para a presença radical. No ricochetear das costas contra a parede, na vibração incessante do violino afinado em um só tom, no misto de suspense contínuo e possibilidade de meditação, surge novamente a geometria especulativa — ocasião em que o traçar de uma simples linha é capaz de fundar um novo modo de existir.
Entre o cosmos e o quarto, entre o portal e o corpo, entre a imensidão do vazio e o gesto da criação, esta exposição articula duas formas de suspensão: uma, imersiva e silenciosa; outra, corporal e sonora. O espectador é convidado, então, a ativar o magnetismo que conecta a escuridão sideral ao absurdo cotidiano, vivenciando o limiar da condição existencial, a fantasmagoria do eco encarnado, a zona indiscernível entre o ser e a sombra.
-Por Germano Dushá