[YH-P.012] Caio Carpinelli, Bruce Nauman: Câmara de Reflexão
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[Astronomia Negativa e Monocórdia em Suspensão]

Portais sem começo nem fim. Rajadas de energia disparadas em fractais dinâmicos. Campos de força em plena ação. Um buraco negro. Um sorvedouro de mundos. Astro negativo, acontecimento insondável. O que o olho não vê o corpo sente como gravidade. Uma imagem escura que se impõe pela ausência, absorvendo tudo, apenas para devolver ao todo a própria luz que a circunda.

Um corpo confinado num quarto, suspenso no vácuo. Cai contra a quina da parede, ressoando sua existência, demolindo o instante. Após a colisão, ganha impulso e se solta novamente. Um instrumento musical tensionado continuamente, com as cordas reverberando num só tom. A repetição como ruína em construção; a insistência como absurdez irrevogável. O gesto bruto e direto, levado à exaustão, arrisca uma nova linguagem.

Nesta exposição, Caio Carpinelli e Bruce Nauman dividem o mesmo âmbito — não por afinidade estética, mas por uma tensão que dilata o espaço e o tempo, trazendo provocações sobre o lugar e as capacidades do corpo. De um lado, temos a série Câmara de Reflexão (2025), de Caio Carpinelli: superfícies negras imensas, compostas por sucessivas camadas de tinta e silêncio, em que formas geométricas aparecem como inscrições residuais, embutidas na espessura densa da matéria. As pinturas parecem absorver tudo a seu redor — e, no entanto, devolvem algo, num paradoxo imbricado entre o opaco e a revelação. Como espelhos escuros, sugerem tanto o vórtice quanto o reflexo, o ocultamento e a aparição, a dissolução e a gênese. O preto, aqui, funda um vazio às avessas, feito de acúmulo: de gestos, de decisões, de fricções entre tinta e água, entre choque e assentamento, entre cálculo e execução. Cada trabalho é o resultado de um processo — físico, mental e espiritual — vivido de modo intenso pelo artista, que instaura no campo pictórico uma temporalidade suspensa por meio do manejo da matéria escura e da devoção ao seu mistério. No fundo do vácuo, porém, é a luz que surge novamente, reprogramando de modo frontal a realidade como a conhecemos.

As imagens que emergem das pinturas desvelam fenômenos astronômicos: corpos celestes majestosos, pulsações gravitacionais, trajetórias orbitais, resquícios de explosões silenciosas na vastidão do universo. Na fricção entre o minimalismo formal e o simbolismo latente, há uma densidade alusiva e mística que atravessa essas obras: cada forma, cada camada de preto, parece conjurar forças cósmicas e psíquicas sem nunca nomeá las diretamente. Instauram-se, assim, rituais em que a pintura funciona como uma sala alquímica e a superfície, como um portal fendido à nossa frente, convidando-nos ao abismo transformador.

Em contraponto, os vídeos de Bruce Nauman — Playing a Note on the Violin While I Walk Around the Studio (1967–1968) e Bouncing in the Corner nº1 (1968) — surgem como batimentos rítmicos que marcam o tempo distendido da exposição. Em ambos, o corpo do artista funciona como um metrônomo vivo, orgânico e impreciso, preso ao compasso de gestos repetidos, tensos, desobrigados da razão. Em confronto direto com as balizas de um espaço mínimo, o artista trabalha a repetição e a economia do gesto ao extremo. Sua ação opera no limite, sob parâmetros mínimos e, por isso mesmo, abre uma fenda para a presença radical. No ricochetear das costas contra a parede, na vibração incessante do violino afinado em um só tom, no misto de suspense contínuo e possibilidade de meditação, surge novamente a geometria especulativa — ocasião em que o traçar de uma simples linha é capaz de fundar um novo modo de existir.

Entre o cosmos e o quarto, entre o portal e o corpo, entre a imensidão do vazio e o gesto da criação, esta exposição articula duas formas de suspensão: uma, imersiva e silenciosa; outra, corporal e sonora. O espectador é convidado, então, a ativar o magnetismo que conecta a escuridão sideral ao absurdo cotidiano, vivenciando o limiar da condição existencial, a fantasmagoria do eco encarnado, a zona indiscernível entre o ser e a sombra.

-Por Germano Dushá

[1]

A YHP tem o prazer de apresentar o projeto de cinco anos do artista brasileiro Caio Carpinelli, em diálogo com o artista seminal da arte norte-americana Bruce Nauman – Câmara de Reflexão. – O trabalho emerge como um gesto liminar entre a densidade da matéria e a diluição do pensamento pictórico, ocupando um ponto de inflexão em que a pintura se revela não como superfície, mas como campo de forças espaciais.

A analogia com Bruce Nauman não se estabelece por mera afinidade formal ou citação reverente, mas por uma ressonância estrutural: ambos os artistas elaboram dispositivos nos quais o corpo — do artista e do espectador — torna-se elemento ativador de um campo de instabilidade perceptiva. Se Nauman, em Playing a Note on the Violin While I Walk Around the Studio, transforma a repetição mínima em campo de reflexão corporal e sonora, Carpinelli desloca essa mesma lógica para a superfície pictórica, onde cada camada negra atua como vetor de interferência e reorientação da experiência visual.

Em Câmara de Reflexão (2025), Carpinelli articula a pintura como evento — não no sentido narrativo, mas enquanto ocorrência formal, engendrada pela fricção entre o gesto e a resistência dos materiais. O uso da tela no chão, a introdução de pigmentos criados a partir de experimentações químicas inerentes ao processo da pintura e a organização espacial das telas implicam uma coreografia cuja ênfase reside menos na obra final e mais na condição processual do fazer. Há aqui uma inteligência performativa, em que o corpo do artista e o do observador operam como instrumentos de tradução entre o imaterial (ideia) e o matérico (pintura). Assim como Nauman fixava a câmera e oferecia o corpo à repetição e ao erro, Carpinelli estabiliza a tela para desestabilizar a percepção, projetando o espectador em um campo especular de reverberações ópticas.

O preto de Carpinelli — jamais opaco, jamais pleno — é uma entidade em mutação: uma superfície que se transmuta em volume, reflexão, ausência e intensidade. Ele se afasta de qualquer simbolismo imediato da cor, como a representação do vazio ou da morte, para operar em um registro quase litúrgico da matéria. Como um alquimista do mínimo, o artista converte o negro em campo de imanência: um espelho cego, onde a luz é capturada, filtrada e devolvida sob novas coordenadas.

A pintura, então, deixa de ser uma janela para o mundo para tornar-se um espelho do pensamento. Por meio de gestos circulares, incisões e camadas sobrepostas, o artista constrói uma topografia que exige do olhar não apenas contemplação, mas deslocamento — um ver que é, ao mesmo tempo, ler e sentir. Se o gesto inaugural de Carpinelli é, como nos lembra a citação de Nauman, comunicar uma experiência e não uma informação, então Câmara de Reflexão é um rito de passagem: uma travessia pela espessura da imagem. Sua obra impõe ao espectador um tempo outro — um tempo mental, em que a pintura se torna campo meditativo, quase monástico.

A tradição conceitual, aqui, não se expressa por meio da linguagem ou do texto, mas por uma sofisticação tátil do pensamento. O encontro com Nauman se consuma não como reverência histórica, mas como reinvenção metodológica: ambos oferecem ao espectador um espaço rarefeito, onde corpo e mente se reconfiguram diante do não-saber, do desconhecido. E é nesse ponto — onde o preto se converte em claridade e a pintura em experiência — que Carpinelli inaugura com potência sua jornada artística.

[2]

Há uma luz nisso.
Nasceu do desenho,
mas é mais do que sua mãe.

Há mais ali — na pintura.
O que se vê já vai além do que é visto; reflete.
Veio de repente, como se sempre estivesse lá.
É inútil tentar apontar onde começa.
É sobre o processo.

O que se vê transcende o que é, por causa de como se tornou.
O processo vai além da linha, da tela de algodão,
do gesso, da barra de alumínio esticada com precisão.

Carrega a luz, a umidade, a secura,
a quantidade de pinceladas, os mililitros exatos de cada composição.
Contém o braço cansado de tantas horas,
a excitação de cada nova cobertura,
o momento exato em que a linha toca a superfície.

O que se vê vai além do próprio processo.
Foram horas inteiras, dias inteiros — apenas para serem vividos.
A ansiedade, os medos, as manhãs sonhadoras
e, mais do que tudo, as noites empolgadas com o que poderia vir.

Tudo isso fez parte.
Vai além de mim, além daqueles dias.
Nasceu apenas para ser —
fruto de trabalho e decisões.

Ser mais do que eu era.
É mais do que eu —
sem nunca ser, e nunca ir.

Tudo aqui é novo.
Os desenhos são imagens em evolução.
A tela, lisa como papel, revela e esconde
as muitas camadas de superfície.

Tudo foi calculado.
Tudo foi medido.
O tamanho se tornou algo que eu já não podia controlar sozinho —
começou a se afastar de mim.

A água, o gesso, a secura.
Apenas o branco cru,
apenas para se tornar um preto profundo e reflexivo.

As primeiras camadas foram puro choque,
começando já em oposição.
O óleo enfrentaria a água,
repetidas vezes —
somente com tempo e repetição —
para se tornar outra coisa.
E ainda assim, reflexo de tudo que veio antes.

As marcas anteriores foram retiradas,
deixando novas camadas do que um dia foi.
O preto tomou tudo.
Mudava a cada momento,
seguindo o ritmo do dia.

Começou a ficar caótico — como um nascimento.
Um corpo gigantesco,
deixando partes de si em nossas casas, em nossas roupas.

E então, de repente,
outras pessoas começaram a ver.
A se familiarizar.
A acrescentar sentido.

A mostrar que aquilo que você criou
poderia se tornar mais do que você queria que fosse.

Houve uma monumentalidade no modo como as pessoas se reuniram em torno disso —
uma vila cuidou.

É algo nascido do processo.
Não havia espaço suficiente para montá-lo por inteiro.
Apenas uma ideia distante poderia nos carregar juntos por esse caminho.

Pintura é uma linguagem secreta,
e nós concordamos — em pacto —
em manter o fogo aceso.

Caio Carpinelli
Abril 2025

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